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ONDE ESTÃO OS REGISTROS DAS MULHERES NO FUTEBOL BRASILEIRO?

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Entrevista com a pesquisadora e historiadora do esporte Aira Bonfim mostra que a documentação histórica do futebol feminino no Brasil faz parte de um “quebra-cabeça” que vem sendo montado aos poucos através de pesquisas

Por muito tempo o esporte não era “coisa de mulher”. Esse pensamento surgiu na Grécia Antiga e foi herdado por várias sociedades ao redor do mundo, e perpassa gerações. Esse contexto é fundamental para entender os seguintes relatos desse texto. A figura da mulher em vários âmbitos é construída a partir desse machismo histórico que torna-se a base ideológica, ética e moral de um povo. Inclusive, de forma simples, esses resquícios do passado podem ser vistos nos dias de hoje, no século XXI. E claro, o pioneirismo da narrativa delas dentro dos gramados também não fica de fora dessa intolerância.

Resgatar as memórias brasileiras do início dessa categoria é lembrar dos preconceitos, equipe de várzeas, oficialidade, pouco-caso, indiferença com esta prática em relação a elas, que era feito não só pelo cidadão comum, mas também pelas pessoas que tinham o compromisso de documentar os acontecimentos. Entretanto, é falar sobre lutas e resistências, e mostrar o pluralismo de vários “futebóis”, e mostrar que elas estavam sim interessadas no jogo. Mas contar esta história não é fácil não, na verdade, é um garimpo.

Segundo a historiadora Aira Bonfim, ninguém sabe dizer onde exatamente a história do futebol feminino no Brasil começa, quase não tem literatura, historiografia organizada, e gente interessada em organizar esse material.

“É muito complicado quando a gente compara a história do futebol masculino com o feminino, porque o feminino nunca começou. A história do futebol feminino sempre foi reivindicada, sempre atravessada, do tipo: “vamos entrar no campo e jogar de um jeito ou de outro”, e esses jogos nunca vão ser registrados da mesma forma, então, ele não vai estar na ata de fundação de um clube como o Fluminense, Botafogo. Você não vai ter o jornal dando notícias sobre esses encontros, pelo contrário, eles sempre vão ser tratados já nessa época do século XX como ineditismo, estranhamento, exótico, “café com leite”, você nunca sabe como começou o futebol de mulheres, você tem algumas evidências históricas que algumas fontes dos jornais que registraram, e a partir delas, hoje a gente começa a reconstituir que mulheres estavam interessadas em jogar da mesma maneira que os homens também ficaram apaixonados por essa experiência ilesa”, diz Aira Bonfim.

Aira conta que: “Quando esse esporte, não só ele, mas outras modalidades, são apresentadas aqui no Brasil, trazidas da Europa, no início do século XX, de alguma forma ganharam as “gavetas estruturais” que são: os meninos trazendo para meninos, e nesse momento, as mulheres já são colocadas ali como simples consumidoras, elas já ocupam o espaço da arquibancada, com muita efervescência, essa ideia da festa, a arquibancada vem de uma ideia feminina, mas ao mesmo tempo o jogo não, ela pode gostar de futebol, mas ela tem que ficar do lado de fora, esse convite não é feito, e não vai ser feito nunca na verdade”.


Curiosidade

O futebol feminino nasceu na Inglaterra, na cidade de Londres, durante um jogo entre Inglaterra X Escócia, em 1898. Os primeiros registros que se tem desse esporte praticado por mulheres vem de lá.

No Brasil, as primeiras documentações existentes do futebol feminino são dos anos de 1908 e 1909, as disputas eram mistas, entre mulheres e homens, eles jogavam juntos.

Durante anos acreditou-se que a primeira partida de futebol feminino no Brasil tinha acontecido em 1913, em um evento beneficente, porém, tempos depois foi descoberto que o time “feminino” eram jogadores do Sport Club Americano, ou seja, homens vestidos de mulheres. Essa data mudou para o ano de 1921. Quando acontece na zona norte de São Paulo, a partida entre as senhoritas tremembeenses X senhoritas catarinenses. O jornal A Gazeta cobriu o acontecimento e o colocou em destaque como algo inusitado, umas das atrações da festa de São João.


O futebol feminino reduzido a atração de circo

O circo contribuiu para a divulgação e estigmatização da imagem da mulher no futebol feminino. Essa história começa a ser popularizada em novembro de 1930, quando o jornal do Rio de Janeiro Correio da Manhã noticia de forma inédita, uma das atrações do Circo Irmãos Queirolo. A matéria era descrita da seguinte forma: “torneio disputado por 10 lindas e graciosas moças” revelou que as equipes usariam os uniformes do Brasil e Uruguai. O resultado da atração foi um sucesso, e em poucos dias foi marcado um novo espetáculo, dessa vez, entre Brasil X Argentina. No século 20, o circo era uma das mais importantes manifestações artísticas brasileiras, com grande apelo popular, ele fazia a alegria das pessoas, e por vezes era o único entretenimento que chegava a muitas regiões do Brasil. Pelas cidades que passavam as atrizes vestiam as camisas de times locais. A imagem da mulher atrelada ao futebol, não só no circo, era considerada subversiva e escandalosa aos padrões da época e incomodava muitas famílias conservadoras.

Convite de divulgação de uma partida de futebol feminino do Circo Irmãos Queirolo.
Convite de divulgação de uma partida de futebol feminino do Circo Irmãos Queirolo. FOTO: Acervo Museu do Futebol

Em 1939 e 1940, o futebol feminino explode no Rio de Janeiro, várias equipes femininas são formadas e noticiadas, e começa a ocupar os campos suburbanos da então capital federal. Graças a essa ascensão, um desses times do subúrbio carioca foi convidado a realizar uma partida na prévia de um São Paulo X Flamengo masculino no recém inaugurado Estádio Municipal. No dia 17 de maio de 1940, o Pacaembu é inaugurado por elas, e se torna palco de um jogo de futebol de mulheres, entre as equipes cariocas Sport Club Brasileiro e Casino Realengo Futebol Clube, elas se enfrentam em uma grande partida, que terminou em 2X0 para o time brasileiro.

A mídia

Na época, muita das vezes, esse futebol ainda era visto como um espetáculo. Por exemplo, os escritos dos anúncios e ingressos, utilizam palavras e termos que caracterizam o jogo delas como uma ação cênica. Muitos jornais foram responsáveis por promover, destacar, dar visibilidade a essa ação feminina. Entretanto, alguns diários desqualificavam e minimizaram a ação delas com o intuito de restringir a participação das moças nessa atividade, exemplos: Jornal da Noite, A Nação e O Imparcial. Alguns desses deram espaços a autores renomados para escreverem críticas com posicionamento negativo com intuito de proibir o futebol feminino. Um desses escritores foi José Fuzeira, que teve uma carta publicada, no mês de maio de 1941, pelo Jornal da Noite, diário do Rio de Janeiro, nela ele criticava seriamente a prática esportivo do futebol feminino, e tinha como destinatário o então presidente Getúlio Vargas.

Ingresso para jogo de futebol feminino.
Ingresso para jogo de futebol feminino. FOTO: Reprodução / Estadão Conteúdo

 

Jornal Correio Paulistano (SP), 19 maio 1940,
Jornal Correio Paulistano (SP), 19 maio 1940, p. 16 | Acervo Fundação Biblioteca Nacional

 

Jornal O Radical (RJ), 21 maio 1940,
Jornal O Radical (RJ), 21 maio 1940, p. 10 | Acervo Fundação Biblioteca Nacional

Proibição

Após um mês do envio da carta escrita por José Fuzeira, uma preliminar estava por vir, as mulheres são oficialmente proibidas de jogar bola no Brasil, durante a ditadura do Estado Novo. O decreto lei número 3.199 de 14 de abril de 1941 dizia: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. Daí em diante elas passam 40 anos proibidas de jogar futebol.

Acervo Museu do Futebol.
Acervo Museu do Futebol. FOTO: Roberta Nina/dibradoras

 

Jornal Diário de Notícias (RJ), 04 set. 1941
Jornal Diário de Notícias (RJ), 04 set. 1941, p. 14 | Acervo Fundação Biblioteca Nacional

Engana-se quem pensa que elas não encontraram formas para burlar essa lei, mesmo que de forma ilegal e em casos específicos elas continuaram a jogar, em um evento beneficente aqui, um teatro de revista ali…

“Aí meu filho, a gente continua desobedecendo depois dessa proibição de 1941, então é um engano você pensar que essa proibição interrompeu o desejo das brasileiras de jogar futebol, mas, formalmente, a gente de novo tem mais um dificultador para contar essa história, elas não vão figurar dentro das atas, dos registro desses clubes, a imprensa se ela fala, ela está denunciando esses times, e essas mulheres vão encontrar estratégias de continuar jogando ”, conta Aira Bonfim.


Jogo das Vedetes – Um lugar na Cultura em na história

Mulher é sinônimo de luta, né?! O descumprimento de algumas regras sempre foi necessário para a conquista de direitos básicos em vários contextos da história feminina. No futebol, também foi preciso desobedecer. Em 1959, durante a proibição do futebol feminino, as vedetes entraram em campo, lotaram estádios importantes, e jogaram bola. Em alguns casos, até legalmente. A Casa do Ator conseguiu uma autorização para as estrelas do teatro de revista de São Paulo e do Rio de Janeiro, o evento tinha caráter beneficente.

*Vedetes é o nome dado às atrizes de teatro daquela época.

Pioneiras do futebol feminino no Brasil

Mesmo com a proibição, desafiando a lei, em 1958, no Brasil, o Araguari Atlético Clube foi considerado a primeira agremiação a formar um time feminino.

Pioneiras do futebol feminino de Araguari-MG no jogo de estreia em 19/12/1958
Pioneiras do futebol feminino de Araguari-MG no jogo de estreia em 19/12/1958 — FOTO: Antônio Gebhardt

Em 1965, o governo militar tornou a proibição expressa. Em 1970, o fim da proibição estava perto com a criação da Federação Internacional do Futebol Feminino. Em 1979, a proibição deixou de existir e foi revogada pelo Conselho Nacional de Desportos, porém, a regularização da atividade no Brasil só aconteceu em 1983.

Desde de 2008 os jogos femininos vem acontecendo com constância. Falar sobre o futebol feminino é lembrar dessa dívida histórica que foi contada, e que levará muitos anos para ser reparada. É falar sobre segregação, preconceitos, do lugar que a mulher tem que ocupar na sociedade. E que soe como clichê: lugar de mulher é onde ela quiser!

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