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A LARANJA MECÂNICA DE CRUYFF E SUA REVOLUÇÃO NO FUTEBOL

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O futebol holandês nem sempre foi moderno e encantador. A pouca fé que se tinha sobre a seleção laranja mudou com a chegada de um jogador de temperamento forte: Hendrik Johannes Cruyff, o mito da camisa 14. A trajetória na Copa do Mundo de 1974 foi uma das eras mais ricas na história dos holandeses. Mesmo não conquistando o torneio, a Holanda de Cruyff revolucionou o futebol. Ao lado do técnico Rinus Michels, o craque fez com que o futebol de seu país e de grandes clubes da Europa nunca mais fossem os mesmos. Por isso, vamos contar a história desse time emblemático que nunca conquistou um título (dois vices em Copas e um terceiro lugar na Euro).

Antes de Cruyff, o futebol holandês caminhava a passos curtos. Depois que a safra de bons jogadores chegou, por volta de 1965, a escola holandesa nunca mais foi a mesma. Antes disso, a Holanda somava apenas duas participações em Copas do Mundo, ambas com rendimento fraco. Pode-se dizer que a Holanda mudou da água para o vinho. E parte dessa mudança, começou com um clube de Amsterdam, o Ajax, que ofereceu as primeiras peças que formariam o Carossel Holandês.

Aquela seleção holandesa foi consequência, em grande parte, do fantástico futebol apresentado pelo Ajax na virada dos anos 60 para os 70. O Amsterdamsche Football Club Ajax, apesar de ser um dos principais times da Holanda, tinha o tamanho de um time de bairro. Mas com a chegada de Cruyff e da geração que subiu junto dele, o clube viveu sua era de ouro, conquistando a Liga dos Campeões por três temporadas consecutivas (70/71, 71/72 e 72/73). Os anos de glória também foram consequência do trabalho engenhoso do técnico Rinus Michels, responsável por implantar o futebol total.

A DUPLA QUE REVOLUCIONOU O FUTEBOL

A história de Michels se confunde com a do Ajax. Como jogador, defendeu o clube entre 1946 e 1958, conquistando o campeonato holandês de 45/47 e 56/57. Retornou ao clube em 1965, mas dessa vez como treinador, na época em que formou a dupla que revolucionaria o futebol holandês. Ao lado de Cruyff, Michels introduziu uma maneira nova de se jogar futebol, onde a troca de passes era rápida e a mudança de posições constante, sem que se quebrasse o esquema tático. Esse estilo ficou conhecido como “futebol total”. Baseado nesse modo de jogo, o Ajax conquistou quatro vezes o campeonato nacional (65/66, 66/67, 67/68 e 69/70), três vezes a copa holandesa (66/67, 67/68 e 69/70) e o título inédito da Liga dos Campeões (70/71).

Michels e Cruyff
Michels e Cruyff após o título do Champions. FOTO: site do Ajax

Após a inédita conquista europeia, Michels deixou o comando do elenco e foi para o Barcelona. Cruyff foi convidado a jogar pelo time espanhol, mas, a princípio, recusou a proposta e seguiu jogando pelo seu time de coração até 1973, quando resolveu ir para junto de seu técnico. Antes de refazer a dupla com Michels, Cruyff teve um novo comandante no Ajax: Stefan Kovács. O técnico levou o Ajax às outras duas Ligas dos Campeões.

Na época, a transferência do holandês foi considerada a mais cara até então, custando cerca de 2 milhões de dólares. O governo espanhol não aceitou a negociação e, para burlar o sistema, o Barcelona registrou Cruyff como peça de máquina de agricultura.

E nesse embalo, chegou a Copa do Mundo de 74. Para que a Holanda – que tinha grande parte dos melhores jogadores do momento na Europa – reproduzisse em campo o sucesso de seus times, precisaria de uma peça chave: o treinador Rinus Michels.

O ELENCO E O FUTEBOL TOTAL

A Holanda acumulava décadas sem disputar uma Copa do Mundo, sendo que sua última foi no ano de 1938. Após trinta e dois anos, era chegado o momento de reescrever sua história em Copas. Em 1972 a seleção disputou as eliminatórias e se classificou sem dificuldades para a mundial de 1974, com quatro vitória e dois empates. Aquela Holanda já demonstrava grande força, mas a Associação de Futebol da Holanda (KNVB) buscava um comandante à altura daquele elenco. Depois de muita “novela”, Rinus Michels decidiu assumir o comando da seleção, mas continuou sendo técnico do Barcelona.

 

A base foi formada por alguns protagonistas dos títulos do Ajax e jogadores do clube da cidade de Rotterdam, o Feyenoord – primeiro clube holandês a conquistar a Liga dos Campeões e o mundial de clubes (69/70). A Holanda tinha um sistema defensivo de forte dinamismo. A tática que Michels aplicava dependia do tipo de jogo, tendo a troca de posições de acordo com a necessidade. Foi dessa troca constante de posições que veio o nome de Carrossel Holandês.

No gol, Jan Jongbloed, que não encantava, mas tinha experiência de sobra. Wim Suurbier detinha a lateral direita, e outra hora jogava de ala. A esquerda era comandada por Ruud Krol. Arie Haan e Wim Rijsbergen ocupavam a zaga alternando-se entre a direita e a esquerda.

O meio-campo era a área de maior potência da Holanda, e a posse de bola a arma principal. Nesse estilo de jogo, os volantes não possuíam apenas a missão de marcar. Van Hanegen, Jansen e Neeskens eram responsáveis por pressionar a marcação, criar jogadas e distribuir passes. Os três marcavam avançados no campo adversário.

De todo elenco, a peça mais importante da engrenagem da Laranja Mecânica era Johan Cruyff. Ele armava jogadas pelos lados, no centro, ajudava no desarme e muita das vezes estava presente para finalizar. O ataque tinha Johnny Rep pela direita e Rensenbrink pela esquerda aberto pelos lados e contavam com todo suporte dos meias de apoio e dos alas/lateral. Esse era o time que faria história.

O CARROSSEL HOLANDÊS NA COPA DE 74

Para se ter ideia de como aquele time da Holanda era emblemático, um dos bons retratos daquele ano, o livro escrito pelo jornalista holandês Auke Kok já explicita logo no título o sentimento dos holandeses: “1974 – Nós éramos os melhores”. Mas tudo começou de forma surpreendente para o mundo, com a estreia da Holanda contra o Uruguai,  história que já contamos aqui no blog. A equipe não encontrou dificuldades para vencer, ganhando por 2×0. Em seguida veio o empate de 0x0 com a Suécia. Depois a goleada de 4×1 na Bulgária.

Pedro Rocha, jogador do Uruguai, falando sobre como foi jogar contra a Holanda de 74

Apresentando um jogo diferente, a Holanda – que fazia décadas que não participava de uma Copa do Mundo – estava na briga por uma final. Mas precisava passar por Argentina, Alemanha Oriental e o Brasil. Contra os argentinos, uma aula de bom futebol, com os holandeses vencendo por 4×0. Contra a Alemanha Oriental, mais uma vez a equipe laranja flutuou em campo, vencendo por 2×0. A cada partida o sonho de jogar a final ficava mais próxima. Restava apenas ganhar da atual campeã: a seleção brasileira. Numa partida histórica, a Laranja Mecânica mais uma vez mostrou sua força e venceu por 2×0.

O sonho se tornou realidade e a Holanda estava na final da Copa do Mundo pela primeira vez. O desafio era vencer a Alemanha Ocidental, que jogava em casa. Nos dois primeiros instantes de jogo, sem que os alemães encostassem na bola, Cruyff partiu para o ataque e sofreu pênalti. Gol da Holanda, convertido por Johan Neeskens. Tudo indicava que o título ficaria com os holandeses, mas a Alemanha respondeu com outro gol de pênalti, de Paul Breitner. Antes mesmo que o primeiro tempo acabasse, os alemães viraram o jogo com o gol de Gerd Müller, aos 43. A Holanda ainda lutou por mais 45 minutos, mas a Alemanha segurou a pressão e venceu a final por 2×1.

Compilado de lances dos jogos contra Argentina, Brasil e Alemanha

 

Naquela altura era difícil acreditar que sonho holandês foi adiado. A Holanda de Cruyff e companhia foi parada pela fria Alemanha de 74. Não era a primeira vez que os alemães surpreenderam o mundo vencendo uma seleção favorita na final, pois já haviam feito isso com a Hungria, em 54. Mas aquele desfecho estava longe de ser o último na história dos holandeses, que depositariam suas fichas na próxima Copa.

Final da Copa de 74. FOTO: Acervo Veja

A POLÊMICA DE 78

Quatro anos após a final contra a Alemanha, a Holanda teria pela frente uma nova oportunidade de conquistar a Copa do Mundo. Mas todos se surpreenderam com a ausência do dono do carrossel, Johan Cruyff, que se recusou a ir à Copa. Mesmo desfalcados, os holandeses não se intimidaram e foram em busca do título mundial. Sem seu cérebro e seu comandante (Michels também não estava mais lá), os holandeses depositaram suas fichas em Robert Rensenbrink e na base do time vice-campeão na Copa de 74. Arie Haan, Wim Jansen, Wim Rijsbergen, Ruud Krol, Wim Suurbier, Johan Neeskens, Willem van Hanegem, Robert Rensenbrink, os irmãos Willy e René van de Kerkhof, Johnny Rep, tinham em seus pés uma segunda chance rara. À frente do elenco, estava o técnico austríaco Ernst Happel, treinador do Feyenoord, acompanhado do seu auxiliar-técnico Jan Zwartkruis.

Na Argentina, diferente da estréia contra o Uruguai em 74, a Holanda não encantou. A velocidade que dificultava a vida dos adversários não era mais visível naquele time e, mesmo com as engrenagens do carrossel enferrujadas, venceu os estreantes iranianos por 3×0. Contra o Peru, uma grande decepção: para quem esperava um bom futebol, a partida terminou sem gols. No último jogo da fase de grupos, os holandeses tinham pela frente a seleção da Escócia e se esperava uma vitória fácil por parte dos laranjas. Mas isso não aconteceu.

No primeiro tempo, gol de pênalti convertido por Rensenbrink. No segundo, um baque: os escoceses guardaram três gols nas redes de Jongbloed. A derrota encerraria a participação da Holanda na copa devido ao saldo de gols, mas a salvação veio com o chute forte de Johnny Rep, sem chances para o goleiro Alan Rough.

Mesmo com a classificação, as polêmicas continuavam pelos bastidores. A má atuação do time e o avanço suado para a próxima fase da competição, incomodaram o presidente da federação holandesa, Wim Meuleman, que cobrou resultados. Sentindo a pressão, Ernst Happel passou a dar mais autoridade para a comissão técnica e deixou que seu auxiliar Zwartkruis fizesse a preleção, ficando responsável também pelas alterações. A adversária era a Áustria, país natal de Happel. Com algumas alterações, inclusive no gol, a Holanda voltou a encantar e venceu os austríacos por um placar arrasador de 5×1 e se viu novamente como favorita ao título.

O próximo jogo vinha cercado de emoções. A Holanda ia encarar a atual campeã Alemanha, um reencontro com aquela que frustrou os sonhos dos holandeses em 74. Era hora de vingar a final da última Copa, mas o jogo acabou em 2×2.

Quanto mais difíceis os jogos, mais forte a Holanda se mostrava. Veio o jogo contra a Itália que, naquela altura, valia vaga na final. Com muita garra e óleo na engrenagem, os holandeses venceram os italianos por 2×1 e chegaram à final da Copa do Mundo pela segunda vez consecutiva. E novamente, disputando a finalíssima contra o time anfitrião.

Sem Cruyff e bem menos brilhante, a Holanda chegou à decisão contra a Argentina. FOTO: Acervo

O final não é nenhuma novidade. O filme de 74 se repetiu. A Holanda perdeu por 3 a 1 (depois de empatar a decisão em 1×1), ficando novamente com o vice campeonato mundial.

A AUSÊNCIA DE CRUYFF NA ARGENTINA

A escolha de Cruyff por não disputar a Copa causou grande polêmica e algumas teorias da conspiração. Uma das suposições criadas é de que a esposa do atleta, Danny Cruyff, não havia gostado de uma suposta festa na piscina que Cruyff e outros jogadores, deram no hotel Waldhotel Krautkrämer, em Hiltrup, com a presença de prostitutas na concentração de 74. O ocorrido foi publicado no jornal alemão “Bild” e Danny teria ligado para o marido e feito-o prometer que jamais disputaria outro torneio.

Outra teoria discutida na época, dizia que o holandês não queria viajar para a Argentina em repúdio à ditadura de Jorge Videla (que ficou no poder entre 1976 a 1981 cometendo inúmeros crimes contra a humanidade). Outros acreditavam que o jogador havia pedido uma quantia maior para defender sua seleção.

Cruyff acabaria jogando só a Copa de 74. FOTO: Acervo FIFA

Após toda algazarra criada pela ausência do craque, 30 anos depois, em 2008, o holandês se declarou a respeito de sua escolha. No ano de 1977, Cruyff e sua família sofreram uma tentativa de sequestro em sua casa, na cidade de Barcelona. Aquilo mexeu com ele, que entre afastar-se de seus familiares e jogar a Copa de 78, ele escolheu não embarcar para a Argentina. No fim das contas, a única Copa do Mundo que Cruyff disputou foi a de 74 e nunca saberemos o que poderia ter acontecido em 78, se ele tivesse disputado aqueles jogos em terras argentinas.

O QUE A HOLANDA DE CRUYFF REPRESENTOU PARA O FUTEBOL?

Esquecer dessa seleção é impossível. O conceito de jogo, formações e táticas são observadas até hoje nos grandes clubes da Europa. O título não veio para os holandeses, mas, mais que isso, o futebol total transformou o que se entendia sobre tática e inteligência futebolística. O Barcelona e o Ajax, clubes em que Cruyff e Michels passaram, mantém vivas as raízes do que foi aquele avassalador estilo de jogo. Talvez não igual a antes, mas ainda sim, o futebol rápido, a pressão total e a constante troca de passes e posições são vistas como o melhor caminho para a vitória. Talvez o time catalão tenha sido o mais influenciado por esse estilo.

O Barcelona de Josep Guardiola é um bom exemplo de que a base consolidada por Cruyff, enquanto técnico do time (1988 a 1996), atravessou gerações. Mais precisamente, o time espanhol é o clube em que Cruyff conseguiu inserir tudo o que aprendeu ao longo de sua carreira, com uma metodologia que se tornou característica do Barcelona. Isso vale mais que qualquer título que o craque holandês conquistou pelo clube.

 

 

A Holanda de Cruyff além de revolucionar o futebol, mostrou para o mundo que não é necessário ser campeã para entrar na história. Assim como aconteceria ao Brasil de Telê, o título não veio para aquela seleção, mas o brilho nos olhos de milhões de torcedores e amantes do esporte, valeu mais do que qualquer troféu. Como disse o próprio Cruyff, “Eu represento a era que provou que o futebol ofensivo era divertido e bem sucedido!” Junto de Rinus Michels, ele deixou um legado que jamais será apagado. Como as composições clássicas de Mozart, o futebol daquela Holanda continua reverberando nos tempos atuais.

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