O “CAMPEONATO DO GELO”: A FAÇANHA QUE IMORTALIZOU A GARRA ATLETICANA
A conquista que está eternizada no hino, mas que com o passar do tempo e a mudança do mundo, deixou de fazer sentido para nossa nova realidade e, para muitos, perdeu a importância. A própria gente do Atlético Mineiro talvez tenha perdido a dimensão do enorme feito alcançado naquele ano de 1950, fazendo coro com os rivais que desconhecem ou desdenham da “competição” cantada no hino e cravada na história do alvinegro das alterosas.
O feito é tão importante que com todo merecimento foi eternizada na letra de Vicente Motta, composta quase 20 anos depois daquela excursão marcada pelo pioneirismo e que definiu as características que marcaram a existência do Clube Atlético Mineiro desde então: a garra e a bravura, que foram exibidas nos gramados europeus sem perder a categoria em campo.
A história de que tratamos é a do Galo “Campeão do Gelo”. Aspas porque, como muitos sabem, não era um campeonato e sim uma série de amistosos realizados numa excursão pela Europa. Nunca será reconhecida pela FIFA ou CBF, mas na época, foi imediatamente identificada como algo grande para a história do clube.
Se era uma excursão, por que então tanta importância ao ponto de ser colocado no hino do clube?
O contexto daquela conquista dá a dimensão de quanto brio há nesta passagem da história do Atlético, além de mostrar o porquê dela ser importante para solidificar a grandeza deste clube centenário.
Era 1950 e o Brasil havia passado, meses antes pelo maior trauma de sua história futebolística (pelo menos até o 7×1): o famoso “Maracanazo”, perdendo a Copa do Mundo para o Uruguai, em casa. Mesmo assim o futebol praticado pelos brasileiros era visto como tecnicamente superior ao praticado em outras partes e, em particular, na Europa.
Daí, naquele ano, um empresário alemão junto a um presidente de um clube e um jornalista vieram ao Brasil com a anuência da DFB (Federação Alemã de Futebol) com um projeto de levar um clube brasileiro para uma excursão à Europa, com jogos inclusive contra alguns dos times mais fortes do país.
Se hoje parece estranho, naquele momento também era. Entretanto essa prática se tornaria uma tendência.
O início da era das excursões
Entre os anos 50 e 80, foi muito comum que os clubes brasileiros realizassem excursões pelo exterior. Era financeiramente vantajoso e, do ponto de vista esportivo, era uma das poucas chances de ter contato com outras escolas de futebol. Mas o pagamento em moeda estrangeira (principalmente o dólar) era o maior atrativo para essas aventuras pelo mundo.
Cabe lembrar que o futebol ainda era regional. Nem dentro do Brasil se jogava com frequência contra adversários de outros estados, quem dirá contra clubes de fora do país. Não havia Brasileirão (nem Taça Brasil!) e eram raras as competições internacionais, como o Sul-Americano vencido pelo Vasco. Nesse contexto, as excursões surgiriam como a chance de medir forças com times de longe. A honra do clube era posta em campo e, em caso de vitória, o orgulho da torcida parava nas nuvens.
Houveram outros clubes pioneiros em excursões internacionais antes de 1950, como o Paulistano de Friedenheinch, mas aquela ida do Galo à Europa marcou o início de uma fase em que excursionar deixou de ser a exceção para virar quase que regra para todo time de elite.
O escolha do Galo
A ideia inicial dos três emissários era a de que o clube escolhido fosse dos grandes centros do país, Rio e São Paulo. Porém, havia resistência dos times de aceitar, por causa da dificuldade da viagem e principalmente a questão política. Acontece que Brasil e Alemanha estavam em lados opostos na 2ª Guerra Mundial, que havia acabado apenas há cinco anos. Algo ainda muito recente.
Foi então que Canor Simões, um jornalista mineiro radicado no Rio, teria dito que havia um time forte em Belo Horizonte que poderia se interessar pela turnê na Alemanha. O Galo, naquela época, tinha certo domínio no estado, onde era bicampeão do estadual, e já havia aparecido no cenário nacional com a conquista da Taça dos Campeões Estaduais de 1936. Mas, acima de tudo, tinha um grande time treinado pelo uruguaio Ricardo Díez e com craques como Kafunga, Barbatana (que também seria um importante técnico), Ubaldo Miranda, Zé do Monte, Nívio Gabrich, Alvinho, Vaguinho e Lucas Miranda, que se tornariam ídolos do clube.
O Atlético aceitou o convite e partiu para a Alemanha em 23/10/1950 para ser o primeiro time brasileiro a excursionar pela Europa. Pelo menos foi assim que ficou conhecido na época, mas como já falamos anteriormente, outros clubes já haviam visitado o continente europeu para jogos amistosos. Vale lembrar que a imprensa brasileira criticava o Atlético por achar que seria um fiasco a participação do Galo. Mas parte dela acreditava e, principalmente, a torcida alvinegra, que confiava na força do time.
Fizeram parte da viagem os goleiros Kafunga e Mão de Onça; os defensores Afonso, Juca, Márcio Pulit, Moreno, Oswaldo, Vicente Peres; os meias Barbatana, Zé do Monte, Haroldo e Lauro; e os atacantes Alvinho, Lucas, Murilinho, Nívio, Vaguinho, Vavá e Zezinho; e o técnico Ricardo Diez. Também viajaram o médico, Dr. Abdo Arges, dois jornalistas dos Diários Associados; uma interprete, Teodora Breickport, e o chefe da embaixada, Domingos Dângelo, juntamente com sua esposa. Ubaldo Miranda, um dos destaques do time, não pode viajar porque servia ao exército à época. Eram outros tempos…
Cabe ressaltar as dificuldades que enfrentariam os pioneiros atletas alvinegros no Velho Continente. Viajar para a Europa naquela época era extremamente difícil. O Galo só chegou à Frankfurt dois dias depois. A excursão foi realizada no outono europeu e os atletas pegaram temperaturas baixíssimas, muitas vezes treinando e jogarando na neve, algo com o que não estavam acostumados. O cenário do pós-guerra era de grande parte das cidades destruídas, escassez de recursos e as vezes até de comida. Dificuldades de trânsito numa Alemanha já dividida entre a influência soviética e a do aliança entre França, Inglaterra e EUA. Um enorme desafio para a delegação.
O Galo na Europa
Recebidos com entusiasmo pela imprensa alemã, em 27 de outubro, o elenco do Galo chegou em Frankfurt. Foi onde ficaram inicialmente. De lá, o Atlético seguiu para Munique onde realizou sua primeira partida em solo europeu, contra o TSV 1860 München da Oberliga Süd (ainda não havia a Bundesliga). Conhecido no Brasil como Munique 1860, embora hoje esteja na modesta 3ª divisão, era um dos times mais fortes da Alemanha naquela época. No primeiro tempo, o Atlético abriu uma vantagem de 3 a 1. Na fase final, recuando para defender o marcador, acabou cedendo o empate. E quando todos pensavam que o jogo terminaria empatado em 3 a 3, Vaguinho, nos últimos instantes da partida, marcou o 4º gol e deu a vitória ao Galo. Além de Vaguinho, Lucas Miranda (2) e Lauro marcaram gols para o Atlético diante de 35.000 espectadores no Grünwalder Stadion.
A segunda parada foi em Hamburgo, onde jogou contra o Hamburgo SV da Oberliga Nord, que tinha em seu time nomes como Fritz Laband e Josef Posipal. O estádio estava com a capacidade esgotada. Melhor atuação dos alvinegros e que mereceu aplausos do público. O Galo derrotou a poderosa equipe alemã por 4 a 0, jogando de forma objetiva e cheia de garra. Nívio (2), Alvinho e Lucas foram os artilheiros da partida que teve 20.000 espectadores. Aquela foi a primeira derrota do Hamburgo em casa para uma equipe estrangeira.
Para o terceiro jogo, a equipe deslocou-se para o norte da Alemanha, em Bremen, e o frio foi cada vez mais intenso. Para se proteger nas partidas, os jogadores usavam grossos agasalhos por baixo das camisas e gorros de lã para amenizar os impactos da corrida sob as baixíssimas temperaturas. Os goleiros usavam água quente para manter as mãos aquecidas e corriam para se aquecer quando não participavam dos lances das partidas.
Como a terceira partida foi no dia seguinte ao jogo anterior, os jogadores estavam desgastados e o Atlético perdeu para o Werder Bremen por 3×1, no Weserstadion, com público de 26.000 pessoas. O gol do Galo foi anotado por Lucas Miranda.
Após sete dias de descanso e preparação, em 12 de novembro, o Atlético voltou a vencer. O jogo foi em Gelsenkirchen, na Prússia, contra o Schalke 04, com público de 30.000 pessoas presentes no Glückauf-Kampfbahn. O estádio era pequeno e não havia grama, era pura terra. 3 a 1 foi o placar que traduziu a superioridade alvinegra no jogo. Vaguinho (2) e Lucas Miranda assinalaram os gols do Atlético.
O Atlético saiu da Alemanha em direção a Viena, na Áustria, onde enfrentou o Rapid Viena diante de 60.000 pessoas, no Pfarrwiese. O time era a base da seleção austríaca com nomes como Walter Zeman, Gerhard Hanappi, Alfred Körner, Robert Körner, Robert Dienst, Erich Probst e Ernst Happel. Segundo conta Vavá, no documentário o “Imortal Alvinegro”, o Galo pegou o maior frio de todos os jogos nessa partida com 12° negativos. Ouve até casos de hipotermia nos jogadores ao longo da partida. Com tudo isso, o resultado foi a maior derrota da serie: um 3×0 para o Rapid Viena.
O Atlético voltou à Alemanha no dia 20 de novembro, para jogar em Saarbrücken, contra adversário com o mesmo nome. 2 a 0 pro Galo, com Nívio marcando os dois gols. Dois dias depois, em 22 de novembro, a equipe mineira voltava a campo. Agora em Bruxelas, onde enfrentaria o Anderlech. E mais uma vez o Galo enfrentou os 90 minutos de jogo com muita fibra e dedicação. O resultado final foi 2 a 1, com Vaguinho marcando no primeiro tempo e Alvinho marcando nos últimos minutos.
Em 26 de novembro, o Galo voltou à Frankfurt, para enfrentar o Eintracht Braunschweig. Mesmo sem ter perdido, o empate em 3 a 3 foi tratado como uma decepção. A equipe adversária era considerada fraca e teoricamente não poderia fazer frente ao time atleticano. As constantes viagens, cansaço e frio intenso colaboraram para que a derrota. Vaguinho, Alvinho e Murilinho marcaram nesse jogo.
No jogo seguinte, dia 5 de dezembro, outro 3 a 3, contra seleção dos clubes de Luxemburgo. Vaguinho, Lauro e Nívio marcaram os gols alvinegros. Dali partiram para a última parada, em Paris.
Ao entrarem em campo, em 7 de dezembro, os jogadores logo escutaram o barulho de baterias e cantarola de samba e marchas. Haviam uns estudantes brasileiros de Belo Horizonte e outras cidades, entusiasmados para dar apoio ao time. Vitória do clube mineiro sobre o Stade Francais, no Parc des Princes, por 2 a 1, com gols marcados por Lucas e Nívio. Foi um triunfo consagrador, onde o desejo de terminar a excursão com uma grande glória foi maior que o cansaço e o frio que atormentou os jogadores.
O fim da jornada e a volta ao Brasil
O empresário alemão organizador da excursão, Kauternerk, queria ainda mais jogos. Seriam na França contra o Lille, em Londres contra o Arsenal e mais dois na Itália. Mas o cansaço da delegação fez com que decidissem não disputar os jogos. Os dois primeiros foram inclusive cancelados. O problema foi que o empresário desapareceu, levando as passagens de volta da delegação. Isso gerou mais dias de transtorno – embora tenham valido a chance de conhecer Paris – até que intercedessem por eles no Brasil, permitindo que eles retornassem divididos em grupos.
Ao fim da jornada, o então presidente da Federação Alemã, Peco Bauwens, homenageou a delegação atleticana com uma taça simbólica de “Campeões do Inverno Europeu”. A campanha foi considerada um sucesso. Foram disputadas 10 partidas, 6 vitórias, 2 empates e 2 derrotas. O Atlético marcou 24 gols e sofreu 18. Seus principais artilheiros foram Lucas, Nívio e Vaguinho, com 6 gols e Alvinho com 3.
Na chegada da delegação, em 16 e 18 de dezembro, os jogadores foram saudados no Rio de Janeiro, na preliminar de um América e Olaria pelo Campeonato Carioca. Havia reconhecimento nacional pelo feito, tido como uma vitória importante após o trauma de meses antes no Maracanã.
Já em Belo Horizonte, a recepção foi inesquecível. Algo nunca antes visto até aquela época. Mais de 50 mil pessoas receberam a delegação no aeroporto da Pampulha e lotaram as ruas desde lá até os pontos por onde a delegação desfilou. Um banquete foi oferecido aos campeões, muito assediados por jornalistas e torcedores.
“Foi uma coisa apoteótica. Belo Horizonte ainda não era uma grande metrópole. Acredito que metade da população estava na Avenida Antônio Carlos e na Afonso Pena para nos saudar.”
Vavá ao portal Superesportes
Vavá, o mais longevo dos participantes da conquista, disse que no próprio clube pouca gente conhece a história e tem a dimensão do que ela representa para o clube. Em Hamburgo, o clube local conserva dois minutos de filmagem de momentos que precederam a partida e alguns lances do jogo. Em Gelsenkirchen, uma linha do tempo retrata a importância do confronto para o Schalke 04. O Atlético tem expostos em sua sede apenas dois troféus, das partidas contra o Schalke 04 e Stade Français.
Uma grande jornada que, infelizmente, tem pouco reconhecimento. Principalmente para com aqueles que colocaram o nome do Clube Atlético Mineiro na história do futebol mundial.
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