A CAMISA SURRADA DO YASHIN
O Yashin era demais. Para muitos ele foi o maior goleiro de todos os tempos. O homem que ficou conhecido como “Aranha Negra” foi uma lenda do futebol mundial sem nunca ter feito gols, mas sim evitando vários deles. Foi, sem dúvida, o maior jogador soviético da história e seu nome rompeu a cortina de ferro para ganhar vários cantos do mundo.
Um deles, o Brasil, onde mesmo sem nunca tê-lo visto ao vivo – na verdade, tendo visto poucas imagens dele em ação – reconheci nele uma legenda de um tempo mais romântico do futebol, mas não menos importante. Uma fama que rompeu décadas sem que seu nome fosse esquecido. Outro deles, o Chile, onde essa história curiosa se passou.
Como nos dias anteriores daquela viagem à Santiago, nos preparamos – Fran e eu – para mais um passeio em um ponto turístico da cidade. Separamos câmera, dinheiro, mapa. Trocamos de roupa, tomamos nosso café e, enfim, não faltava mais nada. Tínhamos tudo planejado, é claro, como bons turistas que somos. A estação de metrô, nosso principal meio de transporte nesses dias, ficava a poucos quarteirões de onde estávamos hospedados e nos deixaria na porta do Serro San Cristóbal, destino escolhido para o passeio do dia. Seguimos caminhando até ela.
Ao alcançarmos o segundo quarteirão do nosso trajeto, ouvi alguém nos chamar. Pensei que tivéssemos perdido algum objeto ou algo do tipo. Só pensei, pois entender eu não entendi nada. Enquanto eu seguia na tentativa de diálogo com o homem que me abordou, do lado oposto da mesma calçada, a Fran notou um senhor parado olhando pra ela e sorrindo, enquanto apontava pra mim. Logo ela notou que ele estava pedindo pra me chamar. A essa altura, o cara que tentou falar comigo já desistiu, até um pouco raivoso, e foi embora. Fran me chamou e, quando me virei, dei de cara com uma figura bem curiosa. Afinal, não é todo dia que você vê na rua um senhor segurando um monte daqueles macarrões de piscina.
Se ela não entendeu nada, eu muito menos. Enquanto eu fui atendê-lo, Fran ficou observando a abordagem do senhor, que olhava a estampa da camiseta que eu usava como uma criança olha para um presente novo. Era uma velha camisa branca com uma ilustração do Yashin. Exatamente. O goleiro soviético voltou pra história.
O curioso senhor perguntou onde havíamos conseguido aquela camiseta e Fran explicou que ela havia feito na época que trabalhava numa estamparia e me dado de presente. Brevemente conversamos sobre o lendário jogador da União Soviética, que parecia causar grande comoção nele. E ali mesmo veio nossa maior surpresa, quando o senhor sugeriu que vendêssemos a peça de roupa para ele. Eu falei não logo de cara, até pelo fato de achar aquilo absurdo demais. Ele insistiu e lançou mão do argumento de que era muito importante, pois gostaria de presentear o irmão, que faria aniversário naqueles dias. Ainda assegurou que ele ficaria eufórico com o presente. Aquilo só não parecia mais estranho do que aqueles macarrões de piscina que ele segurava.
Justificamos que a camisa era velha, já estava bastante usada, manchada e que não seria um bom presente. E era verdade. Ele, já meio bravo e visivelmente insatisfeito com a negativa, deu uma pausa, olhou bem para nós dois e disse: “vocês não Milleniuns, não entendem bem o valor dessas coisas… essa camisa vale muito! Vocês não fazem ideia… Eu troco ela com vocês por umas três! Eu moro aqui ao lado, vamos lá ao meu apartamento que eu mostro!”
Ainda achando aquilo bem surreal, seja pelos macarrões de piscina ou pela conversa, pelo convite ou pelo fato de nós termos aceitado ir para a casa de um estranho num outro país. Enfim… Lá fomos nós, meio intrigados e rindo muito por dentro. Ah, importante: houve uma apresentação! Não me lembro se logo de cara ou se na ida para casa dele, mas nos apresentamos. Seu nome era Guillermo. Realmente a casa dele era alguns metros dali e logo que passamos pela portaria ele nos apresentou ao porteiro dizendo: “esses são meus amigos do Brasil!”. O porteiro nos cumprimentou e logo entramos no apartamento dele, com nosso anfitrião apresentando tudo.
Ele disse que era um inventor e, quando entramos, tivemos certeza. Nos mostrou brevemente as criações que desenvolvia, principalmente para a diversão dos netos. Aí entendemos a razão dos macarrões de piscina. Eram para um brinquedo que faria para eles. Aliás, mais um, pois o apartamento era repleto deles. Guillermo não parava de mostrar coisas e, com muito orgulho, foi a vez de apresentar as camisas que colecionava. Eram muitas, mas dentre elas, camisas de hockey da equipe da União Soviética. Uma delas de outro Yashin, o Alexey.
Foi quando tirou uma camiseta do Chile, modelo que os “hinchas” chilenos usavam na Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Número 7, como o de Alexis Sanchez. Foi quando me propôs novamente a troca. Fran ainda insistiu muito para que ele não fizesse aquilo. Mostrou para a senhora que trabalhava na casa dele (que infelizmente não me recordo o nome) o quanto a camisa era velha. Ela riu, mas me pareceu que ela já sabia que para Guillermo não fazia diferença. Pelo contrário.
Saí do banheiro com a camisa chilena no corpo e lhe entreguei a que usava. Foi quase uma troca de camisa de jogadores de duas seleções depois de um jogo – mas sem que as camisas estivessem suadas, naturalmente. Ele pegou aquela velha camisa como se fosse um troféu, ou algum tipo de relíquia. Não teve como não perguntar: por que o irmão dele gostaria tanto de uma camisa tão simples como aquela? A razão era o Yashin.
Guillermo voltou ao ano de 1962, quando a Copa do Mundo aconteceu no Chile. Ele e seu irmão já eram completamente apaixonados por futebol e aquela experiência mudaria a vida deles. Além de acompanhar a competição, não me lembro com precisão o motivo, mas eles conseguiam assistir alguns treinos das seleções, dentre elas a do Brasil. Enquanto para todos os colegas havia a decepção por Pelé não estar nos treinos – pois se machucou logo na estreia e ficou fora da Copa – ele viu de perto um desconhecido Amarildo. Não precisa falar que depois ele passaria anos falando sobre o homem que ajudou Garrincha a vencer a Copa. Talvez, como se fosse o menino que o descobriu.
Mas para seu irmão, havia um ídolo maior. Ele jogava de preto e não driblava, nem fazia gols. Só os evitava. Era o Yashin. E naquela Copa, a visita do goleiro soviético ao Chile foi a realização de um sonho. Vale lembrar que o irmão jogava no gol, como seu ídolo. Guillermo contou quase com lágrimas nos olhos sobre como seu irmão ficaria emocionado ao receber aquela camisa, com tantas conexões afetivas. Uma ponte com aquelas lembranças de menino. Não havia como não fazer aquela troca.
Desde então me pego pensando no quão aleatório foi aquele encontro e no quanto ele representou. Ele nos fala muito sobre o que o futebol representa e sobre como ele nos conecta. Como nos identificamos.
Achou que a história não ia ficar mais estranha? Depois de fotografarmos e registrarmos o momento, trocarmos contatos e admirarmos um pouco a vista do seu laboratório de invenções, dissemos que precisávamos ir embora. Ele não satisfeito, ainda nos ofereceu carona até nosso destino.
Só essa parte já rendia outro texto. Era muita história. Falamos de golfe, futebol e outros esportes. Falou-nos sobre a família e contou de quando morou no Brasil nos anos 90, época em que torcia para o Palmeiras. Ele gostava do Amaral! Aliás, dias depois daquele encontro, o alviverde seria campeão Brasileiro. No meio do caminho, encontrou sua esposa para lhe entregar algo. Novamente nos apresentou como “amigos do Brasil”. Eu estava muito lisonjeado, mas não podia parar de pensar no quanto a esposa dele devia estar achando estranho.
De volta ao caminho, ainda teve tempo para uma história de quando ele foi estudar nos EUA e acabou virando kicker do time de futebol americano da escola, batendo o field goal de uma vitória histórica contra a escola rival. Nós estávamos tendo um encontro com o verdadeiro “Forrest Gump” chileno.
Ficamos no Cerro e nos despedimos de Guillermo Garrido. Daquele dia em diante, nosso amigo “Memo” – já tínhamos intimidade suficiente para chama-lo pelo seu apelido – passou a integrar nossas histórias de viagem. Conversamos até hoje e, inclusive, aproveitamos a ida de um casal de amigos à Santiago para lhe enviar uma camisa nova, com um layout que fiz especialmente para ele. Do “Aranha Negra”, claro. Fran havia prometido que lhe enviaria uma nova, pois até hoje ela ainda lembra o quão velha a camisa era.
Agradeço ao Yashin, mesmo que indiretamente, pelo grande dia e pela grande história. Deixei minha velha camisa surrada no Chile. Voltei de lá com um novo camarada.
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