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KANU, A NIGÉRIA E A PARANOIA BRASILEIRA PELO OURO

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Provavelmente Kanu foi o primeiro jogador africano que ficou fixado na minha memória. E a Nigéria foi responsável por grande parte da necessidade brasileira por uma medalha de ouro olímpica no futebol. Dois bons motivos para revisitar a emblemática semifinal do torneio olímpico de futebol masculino de 1996, entre Brasil x Nigéria.

Primeiro temos que contextualizar algumas coisas. O país vivia ainda euforia do tetra e estava solidamente no posto de melhor seleção de futebol do mundo. Só lhe faltavam três títulos: Mundial Sub-17, Copa das Confederações e o Ouro Olímpico. O mais pomposo dos três era o ouro, que a seleção havia deixado escapar em 84 e 88, quando foi prata. Sem falar que nos jogos de Barcelona, em 92, o Brasil nem disputou o torneio, devido ao fracasso no pré-olímpico. E em Atlanta, o futebol mudou sua disputa.

Para apaziguar a queda de braço entre FIFA e COI, o regulamento mudou e as seleções convocadas passaram a contar apenas com atletas com menos de 23 anos, com cada uma podendo levar até três jogadores acima da idade. E rendeu cada timaço. A Argentina, por exemplo, levou Almeida, Ayala, Gallardo, Crespo, Ortega, Simeone e Piorro Lopez. E o Brasil foi de Dida, Roberto Carlos, Ronaldo, Aldair, Bebeto e Rivaldo. Ainda teve Raul na Espanha, Nuno Gomes em Portugal…

A campanha brasileira começou com uma desastrosa derrota de 1×0 para o Japão, mas foi corrigida pelas vitórias de 3×1 sobre a Hungria e 1×0 sobre a Nigéria. Curiosamente o Japão acabou eliminado no saldo de gols, mesmo com duas vitórias no grupo. Nas quartas o Brasil passou por Gana com um 4×2 e viu a Nigéria superar o México com um 2×0, garantindo que o confronto da primeira fase se repetisse, agora com uma vaga na final em disputa.

O jogo do dia 31 de julho em Athens parecia um prenúncio de uma decisão histórica entre Brasil e Argentina. Abro um parenteses para ressaltar que, se for para rever esse jogo, recomento a transmissão da Band, com Luciano do Valle narrando e Tostão nos comentários, pois os dois fazem uma linda resenha antes do jogo. Tostão adverte sobre o que vai acontecer no jogo e ainda resume a competição em dois minutos de fala. Sem rodeios!

O jogo começa com Rivaldo no banco e o Brasil escalado com Dida, Zé Maria, Aldair, Ronaldo Guiaro e Roberto Carlos; Zé Elias, Amaral, Flávio Conceição e Juninho; Bebeto e Ronaldo. E logo aos dois minutos, Flávio Conceição bate uma falta que desvia na barreira e mata o goleiro. O Brasil já vencia por 1×0. E nos 10 primeiros minutos parecia que seria fácil, com a defesa da Nigéria em linha e sem compactação nenhuma.

Mas não foi à toa que esse jogo entrou para a história. de repente, mudou tudo. Aos 15 min, um chute nigeriano desvia e quase entra. No rebote do escanteio Jay Jay Okocha quase marca. Aos 17, Amuneke erra um gol cara à cara com Dida. E aos 18, Babayaro bagunça Zé Maria na lateral e chuta cruzado. Roberto Carlos faz contra. A Nigéria acoou o Brasil por 3 minutos e empatou o jogo.

O Brasil se assustou e um minuto depois do gol de empate, Bebeto mergulha de cabeça em cruzamento de Zé Maria e obriga Dosu a fazer um bela defesa. Mas ai o jogo ficou mais aberto ainda. Os dois times só atacavam. Aliás, no meio dessa confusão, Roberto Carlos toma um cartão amarelo por cera. Aos 23 e com o jogo empatado. Vai entender.

Roberto Carlos marcando Kanu. FOTO: Getty Images

E tiroteio continuava. Por volta dos 25, Babangida fica cara a cara com Dida e chuta cruzado para fora. No ataque seguinte, Ronaldo faz grande jogada, invade a área e bate para a defesa de Dosu, mas Bebeto pega o rebote e empurra para o gol. O Brasil passa a frente de novo.

Dos 30 para a frente o Brasil voltou a dominar o jogo completamente. Aos 37, Bebeto lançou Juninho, que ajeitou de peito para Flávio Conceição, que saiu livre para tocar na saída do goleiro. 3×1. E o Brasil voava em campo. Aos 45, Dosu saiu muito mal e quase foi encoberto. A Nigéria foi para o intervalo ciente de que os 15 minutos finais poderiam ter rendido uma goleada.

Na volta do intervalo parecia que nada havia mudado. Foram quinze minutos de completa pressão do Brasil, que jogava como se dependesse de um placar elástico para avançar. Com um minuto, Bebeto cruzou, o goleiro saiu mal e Ronaldo bateu cruzado. Juninho desviou para o gol e o árbitro espanhol Gárcia Aranda marcou impedimento. Três minutos depois, Ronaldo passou como um raio pela defesa, pelo goleiro e, com o gol vazio, chutou na rede pelo lado de fora. Aos 10, novamente o camisa nove atravessou a defesa africana, mas ao invés de servir Bebeto que estava livre, ele bate para fora. O jogo já poderia estar uns 5×1.

O jovem Ronaldo deu muito trabalho para a defesa nigeriana. FOTO: reprodução/YouTube

Mas, novamente tudo virou e a Nigéria iniciou outra blitz. Aos 15 West cabeceia por cima quando apareceu livre na área. Dois minutos depois, Amokachi cavou pênalti quando era marcado por Flávio Conceição. O juiz marcou. Mas Dida, que já mostrava naquela época que era bom de penais, pegou a cobrança de Okocha. A defesa que deveria aliviar o Brasil parece que não fez efeito. Um minuto depois, Babangida invade a área e chuta cruzado. Aldair salva e, no bate-rebate a zaga se safa.

O jogo esfria um pouco depois dos 20 minutos e o Brasil passa a esperar o fim do jogo. Todo mundo já pensava apenas na final entre Brasil e Argentina, já que os hermanos já tinha eliminado Portugal. Rivaldo entrou em campo para cadenciar o jogo e usar sua experiência. Mas ele não faz nada disso.

O craque entra muito, mas muito mal. Toma um cartão amarelo logo de cara e erra um gol de cabeça na cara do goleiro. Parece que o meia já entrou em campo com a apatia que a seleção mostrava. Claramente os atletas brasileiros estavam contando os minutos para o fim do jogo. É nessas horas que o diabo faz das suas.

Aos 32 minutos, Rivaldo mata um contra-ataque claro do Brasil ao prender demais a bola. Ele desarmado e numa subida rápida, Ikipeba chega livre da entrada da área, chutando rasteiro no canto. E torna um jogo totalmente controlado numa partida kamikase. Os Águias esquecem o significado de defesa e sobem desembestadamente para o ataque. São mais de 10 minutos de tentativas desordenadas, uma depois da outra, com o Brasil na defesa, claramente desesperado.

Sem saber o que fazer e totalmente à mercer da sorte, do tempo e da pontaria dos africanos, o Brasil fincou-se na frente do gol de Dida e segurou até onde deu. Só que aos 45 deu mole. Uma falha bisonha dentro da área seguida de um bololô danado tiveram como fim uma bola nos pés de Nwanku Kanu. O atacante do Ajax entrava para a história do Brasil, da Nigéria e das Olimpíadas à partir daquele momento. Na pequena área ele levou a bola e girou pra chutar por cima de Dida. A desgraça estava feita.

O jogo acabou empatado, para surpresa de todos que já davam como certa a classificação brasileira. Merecido, por um time que joga fora todas as chances de matar o jogo e chega aos 45 na defesa rezando para não tomar o empate. A prorrogação era obrigação! E era morte súbita. Era tomar o gol e dar adeus.

Cautela? Que nada. Parecia que os times foram para o tempo extra sem defensores. O Brasil se lançou ao ataque para compensar a apatia do fim do segundo e logo com 1 minuto, Zé Maria acertou uma bomba cruzada que quase entrou na gaveta. Era tudo ou nada. Faca nos dentes! E foi nada.

Na primeira subida da Nigéria, Kanu matou o Brasil. A morte foi súbita mesmo. Logo com cinco minutos. O Brasil não se deu conta do que aconteceu. Ficou sem o ouro e construiu um trauma.

O strike provocado por Kanu após o gol de ouro. FOTO: Baú do Esporte

No ano seguinte veio o título do Sub-17 e o da Copa das Confederações. E o ouro passou a ser mais obrigatório ainda. Mais quatro fracassos vieram depois até que finalmente a medalha dourada fosse conquistada no Rio. Mas o jogo mais emblemático da história olímpica continua sendo o duelo de Athens, contra a Nigéria. Um jogo atípico e completamente diferente de qualquer prognóstico.

Festa nigeriana após a improvável medalha de ouro. FOTO: Getty Images

Ficha Técnica

LOCAL: Sanford Stadium, Athens, Geórgia, EUA.
DATA: 31 de julho de 1996.
PÚBLICO: 78.587 pagantes
ÁRBITRO: José Maria García Aranda (Espanha)
CARTÕES AMARELOS: Roberto Carlos, Rivaldo e Ronaldo Guiaro (Brasil); Oparaku, Babangida, Lawal e Amokachi (Nigéria).
BRASIL – Dida, Zé Maria, Ronaldo Guiaro, Aldair (Narciso) e Roberto Carlos; Zé Elias, Amaral, Flávio Conceição e Juninho (Rivaldo); Bebeto e Ronaldo (Sávio). Técnico: Zagallo.
NIGÉRIA – Dosu; Babayaro, West, Okechukwu e Opakaru (Oruma); Lawal, Babangida (Fatusi), Jay Jay Okacha e Amuneke (Ikipeba); Kanu e Amokachi. Técnico: Jo Bonfrere.

Fica a lembrança do maior momento da seleção nigeriana, que seria a base do time do jogaria na Copa da França, em 98. De craques como Okocha, Babangida, Kanu e West. E, claro, do jogo que pode fatalmente ser apontado como o estopim da paranoia brasileira pelo ouro olímpico.

 

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