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A GENTE PRECISA DOS HOMENS PARA FALAR DO FUTEBOL FEMININO?

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O espaço das mulheres nos esportes é fruto histórico de anos de lutas e reivindicações. No futebol não é diferente. O machismo enraizado culturalmente na sociedade ainda contribui na desigualdade de gênero dentro das atividades. Compreender e investigar o passado é fundamental para entendermos o presente.

O espaço do futebol feminino na mídia nunca foi suficiente. Muitas vezes nem existiu. Dessa vez, vamos revisitar um texto que deu esse espaço de uma forma curiosa.

Em outubro de 2001, a redação da revista Placar, desafiou o time da Portuguesa a uma partida: mulheres versus homens. A ideia era saber “o verdadeiro nível de futebol feminino”, como propunha a publicação especial daquela edição.

Apanhamos de mulher… e gostamos

O time de futebol feminino da Portuguesa estava prestes a estrear no Campeonato Paulista e aceitou jogar com a equipe da Placar. Mesmo com as adversidades e contratempos que poderiam ocorrer (como o risco de se machucar), aceitaram e afirmaram a capacidade de jogar contra os homens -“Taffaréis, Dungas e Raís frutados”, como a matéria descreve.

As meninas tinham entre 16 a 23 anos, faixa etária que era permitida para disputar o Paulistão (algo que a própria matéria já apontava como inexplicável). Porém, para esta partida, a Lusa contou com a jogadora mais nova do time, a Bebel, de apenas 13 anos. Os meninos, eram mais velhos e mediam em média 18 centímetros a mais que o time feminino. Mesmo com as diferenças, queriam saber como um time de mulheres se sairia contra um time de homens.

“Apanhamos de mulher… e gostamos” era um título que já apontava o machismo comum à sociedade. Apesar da brincadeira com isso, a matéria mostra que antes do jogo, as atletas da Portuguesa estavam cautelosas com a situação que viveriam, seguindo as recomendações da então técnica, Marisa Nogueira, ex-jogadora da Seleção Brasileira. “Cuidado com os pés que a gente tem jogo domingo”, disse a treinadora em uns dos seus pedidos.

No texto, são destacados alguns momentos da partida na narrativa. O jogo começou com “um bando de meninas tocando a bola de pé em pé diante de galalaus com medo de quebrá-las com um simples encostão”, o que ocasionou o primeiro gol delas. Tal receio era evidenciado “pois eles ficavam observando elas jogarem”, e disseram ter “aliviado nas divididas”. O texto da revista Placar conta que eles tiveram que aturar as gritarias das comemorações e a gritaria incessante da treinadora para acertar a marcação.

No final do jogo não houve comemoração. Um empate, 4×4. Elas se sentiram subestimadas. A meio de campo juliana, reclamou: encostavam e já pediam desculpas, como se a gente… O jornalista completou: “Como se elas fossem mulherzinhas”. E foi aí que eles se deram conta que elas estão mais acostumadas do que eles a enfrentar o sexo oposto.

Quase vinte anos depois

Quase 20 anos se passaram e nós entramos em contato com alguns dos personagens dessa história. Basicamente, procuramos saber como foi a reação da redação em fazer esse jogo, ver como surgiu essa ideia e saber qual foi a reação do time da Lusa. Entretanto, com o olhar de hoje, também vieram outros questionamentos. A matéria que tinha o objetivo de divulgar o futebol feminino não pode parecer machista? Uma matéria dessa natureza caberia no contexto atual do futebol feminino e da sociedade brasileira? Qual seria a análise da matéria, sob a ótica de cada um, com o olhar de hoje?

Falamos com o jornalista André Fontenelle, que escreveu o texto; Arnaldo Ribeiro, o camisa 10 do dia do jogo; e Sérgio Xavier Filho, o diretor de redação da Placar na época, que se recuperou de lesão para jogar a partida. Infelizmente, não conseguimos falar com integrantes do time da Portuguesa.

Veja abaixo o que eles disseram sobre a matéria.

Sérgio Xavier Filho

“Olha, não me lembro exatamente da redação. Sei que eu estava ‘empolgadaço’. Me agradava muito abordar a questão das diferenças comparativas. Adorava a ideia de sermos cobaias disso. Na época eu estava com um estiramento de adutor. Fiz Rolfing (uma técnica de medicina alternativa) pra tentar me curar a tempo e participar. E deu certo!

Outro dia vi um artigo da Vera Iaconelli, na Folha, sobre lacrações e cancelamentos. Brilhante. Analisar algo do passado com a régua moral de hoje é incorreto. Não é justo. Para a época, a abordagem para o futebol feminino era contemporânea, muito mais do que os nossos leitores estariam preparados para ler. E lendo hoje também não vejo problemas. Falamos de força física e da surpresa pela excelência do time da Lusa. Era essa a sensação, acho honesta.

Acho que a matéria seguirá valendo. É uma questão no ar, quase eterna. Marta entre os homens estaria em que patamar? Se você faz todas as ponderações físicas, hormonais, acho interessante. Não temos grandes dúvidas em relação à Tiffany (jogadora de vôlei) no meio de mulheres? Se a abordagem é respeitosa, sensata, acho que acrescenta ao debate. 

Carta ao leitor da edição em que fui publicada a matéria. FOTO: reprodução

Sérgio ainda levanta um aspecto importante da matéria (que também foi lembrado pelo Arnaldo): a neutralidade do André Fontenelle para escrever a matéria.

“O André, além de não jogar futebol, ele debochava muito do jeito dos boleiros da redação. Se achavam pra burro. (…) Ele não compartilhava com aquela empáfia machista, normal de uma redação de futebol. O jeito que a matéria foi escrita ficou muito interessante, por conta dessa suposta neutralidade. Tanto que o André abre a matéria falando do banco de reservas da Portuguesa. Se tinha alguém torcendo pela Portuguesa, pode ter certeza que era André Fontenelle (risos)”.

Arnaldo Ribeiro

Em conversa com a gente, Arnaldo lembrou que logo na reunião de pauta ele achou que não ia dar certo. No momento ele pensou que a diferença de idade e a questão física iam se “sobrepor implacavelmente” sobre a equipe a feminina. Seria “covardia”. Após aceitar participar, ele ressalta que o jogo reforçou algumas opiniões que ele tinha e mudou outras.

“O que reforçou: o aspecto físico masculino, a força, o tamanho… é muita diferença numa dividida, num corpo-a-corpo, num choque. Outra coisa que reforçou foi a questão da goleira. As traves – as medidas oficiais – são cruéis para a goleira menina, porque é muito grande o gol. Eu fico me apegando à questão de outros esportes como o vôlei, que tem a medida da rede de uma altura para homens e de uma altura para mulheres, não por acaso. No futebol, claro que logisticamente ia ser mais difícil. Mesmo agora, com homens e mulheres maiores, eu continuo achando as medidas do gol desproporcionais para a mulher. O que ficou evidente no jogo, para a goleira da Portuguesa. 

O que me surpreendeu favoravelmente foi a organização da equipe. O treinamento, a organização, a movimentação não era uma coisa de pelada, como o nosso time era. A organização delas equilibrou razoavelmente o jogo. Elas também tinham muitas jogadoras para substituir. Pela organização e pelo fato de ser um time, deu uma equilibrada. Essa foi minha surpresa favorável em relação ao time feminino.

O Arnaldo achou a experiência bem legal e interessante. Ele ressaltou como a postura do time mudou no decorrer do jogo. “Sentir que no começou você meio que ‘pega mais leve’ e, a partir do momento que o jogo tá se desenvolvendo, começa a ser um jogo mesmo. Teve até a entrada mais forte do Fabião. Foi inesquecível, porque o nosso cara mais alto deu um carrinho numa menina que gente quase matou ele. Era porque já estava num nível competitivo como se fosse um jogo pra valer”.

A ideia, em mais uma tentativa de impulsionar o futebol feminino numa época em que ele estava sendo fomentado com campeonatos, tinha dois méritos segundo ele: a vontade de divulgar o futebol feminino e o humor presente na matéria. Ele admite que hoje, talvez você sinta um teor machista quando pegar a matéria, até pela brincadeira do título. Entretanto, aponta um desafio interno da própria revista Placar.

“Em outros tempos, outras décadas (conforme a sociedade se comportava), ela (a Placar) tratou o futebol feminino com muito mais machismo do que naquele momento. Eu posso te exemplificar que na década de 80, a matéria de capa do futebol feminino tinha uma menina de um time de futebol, se trocando num vestiário, de costas, de calcinha, com o número cinco às costas. Essa era a capa do futebol feminino na Placar, na década de 80! Na década de 90, foi capa algumas vezes a Suzana Werner, porque ela era lindíssima e jogava futebol no Fluminense. Foi capa com uma bola tampando os seios dela. Pensa nesse histórico e pensa na ideia de enfrentar um time feminino. Por mais que hoje possa soar machista em algum aspecto, pegando o histórico da revista, era uma avanço absurdo.”

Capas da placar de julho de 84 e de setembro de 96.
Capas da placar de julho de 84 e de setembro de 96. FOTO: Reprodução.

Arnaldo acha que uma matéria dessas, até pelo futebol feminino estar em outro estágio, se fosse pauta hoje em dia, seria completamente diferente. Seria uma outra reunião de pauta, uma outra ideia de matéria. Entretanto ressaltou que, se fosse convidado a jogar com ou contra mulheres, o faria normalmente.

“Eu não estou conseguindo jogar com meu sobrinho de dez anos, eu estou acabado! Mas eu tentaria. Tem uma coisa em relação a mim (…) eu sempre joguei com mulheres. Mais novas até… E eu acho demais. Mas com naturalidade, sem forçar. Sempre joguei com e as vezes contra mulheres. Talvez aqui, não contra um time de mulheres, mas tudo misturado.”

O Arnaldo ainda lembrou que o time da Placar era campeão da Copa Imprensa, o que mostrava que não era uma equipe qualquer. Por isso, ele achou interessante o fato de o time feminino ter equilibrado o jogo contra eles. Ele até aponta que o título acaba sendo uma brincadeira, uma provocação indireta ao time, que de certa forma se achava.

“Com meu olhar de hoje, talvez a melhor matéria para divulgar o futebol feminino não fosse esse tipo de matéria. (…) Eu não a corrigiria. Era a matéria que ‘se encaixava’ naquele momento. Mas repito, hoje, acho que todos nós faríamos um outro tipo de matéria. As discussões sobre o futebol feminino, como diria o Bruno Henrique, estão em ‘outro patamar’. Mas algumas coisas que não estão ali na matéria, permanecem relevantes, com relação a coisas que o futebol feminino não discute, para não soar como preconceito. Medidas das traves, dimensões dos campos. Em outros esportes você tem a distinção por questão física, no futebol não se discute por temor de algum preconceito. Enfim, eu não corrigiria essa matéria, mas hoje, faria um outro tipo de matéria.”

André Fontenelle

“Eu não me lembro mais exatamente como surgiu a ideia, mas certamente foi consequência de discussão na redação a respeito da comparação entre o nível geral (técnico e físico) do futebol feminino em relação ao masculino. Comparação totalmente indevida, como creio que hoje se entende. Mas infelizmente nas redações, à época quase exclusivamente masculinas (como era o caso da Placar), muitos jornalistas menosprezavam o futebol feminino sob o argumento do nível físico e técnico inferior (sem que se dessem conta de que isso era resultado de anos e anos de proibição e preconceito). Disso eu me lembro perfeitamente. Essa matéria era um esforço bastante desajeitado, não de ‘divulgar’ o futebol feminino, como você colocou na pergunta, e sim de combater esse preconceito. Mas comparar é, evidentemente, uma bobagem. É como comparar o tênis masculino ao feminino. Os homens sacam mais forte, mas isso não torna o tênis masculino mais interessante. Cada modalidade deve ser avaliada em si mesma. O forte preconceito que o futebol feminino sofreu ao longo de décadas estava tão introjetado em nós que não nos dávamos conta disso à época.

As meninas da Lusa se envolveram com entusiasmo com a ideia, apesar da preocupação com lesões. A reticência foi maior na comissão técnica, como acho que a matéria relata, mas claro que se tivessem achado que representava um risco físico muito grande, o jogo não teria acontecido.

Tendo quase 50 anos, eu me recordo perfeitamente da evolução da visão em relação ao futebol feminino na imprensa esportiva. O preconceito, que sempre foi fortíssimo, diminuiu muito, mas ainda é grande. Provas disso são inúmeras. Basta ver que no domingo à noite, o Fantástico exibe apenas gols de futebol masculino.

Eu mesmo quero crer que evoluí na forma de pensar, como jornalista. Sempre entendi que era importante dar espaço ao futebol feminino, e é um tema constante da minha reflexão como jornalista. Lembro que, em 1999, como editor do Lance, fiz questão de termos um repórter cobrindo a Copa do Mundo feminina, nos EUA – único veículo do país a estar presente, com o repórter Tales Azzoni. Na própria Placar, por iniciativa minha, cobri a primeira peneira da Federação Paulista para o estadual feminino, naquele mesmo ano de 2001. No ano anterior, tinha coberto a decisão do terceiro lugar dos Jogos de Sydney, em que o Brasil perdeu a medalha de bronze.

Então, olhando para trás, vejo que eu tinha a preocupação de dar espaço ao futebol feminino. Mas era uma preocupação mal direcionada, como essa matéria atesta. Nem sempre fomos felizes na forma de abordar a questão do preconceito, e essa matéria é um bom exemplo disso. Hoje, jamais apoiaria a execução de uma pauta como aquela.

A título de curiosidade, hoje tenho uma filha adolescente que é jogadora de futebol, tendo atuado na base do Centro Olímpico e no Audax, entre outros, o que só reforçou minha conscientização da necessidade de lutar por um dia em que o futebol feminino não apenas tenha o espaço que merece, mas que esse espaço seja igual ao dos homens.”


Lugar de fala da mulher no futebol

No ano de 2019, pela primeira vez, duas emissoras de TV aberta transmitiram a Copa do Mundo de Futebol Feminino. Narrada e comentada quase que apenas por homens. E não é por falta de profissionais mulheres, não. É por falta de darem a elas o lugar de fala. As poucas experiências com participação de mulheres nesses postos antes exclusivamente masculinos (um sinal de avanço enorme), ainda são vistas com preconceito por muita gente.

O bom senso dos profissionais homens, também é importante para a inserção das mulheres. Problemas que sempre existiram como a objetificação, falta de reconhecimento e o desrespeito, com piadinhas como “lugar de mulher é dentro de casa”, “Vai lavar uma louça”, “Maria-homem” e a ideia de que “futebol é coisa de menino”, precisam ser combatidos diariamente.

Afinal, a gente precisa dos homens para falar do futebol feminino? É importante que esse debate não seja limitado. Ampliar a discussão é fundamental para que não haja limitação de nossos papeis dentro da sociedade. E claro, nunca é demais lembrar: lugar de mulher é onde ela quiser!

 


Ficou curioso e quer ler a matéria? Confira  na íntegra neste link ou nas imagens abaixo:

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