O CARTÃO DE VISITAS DA SELEÇÃO DO TRI
Em 3 de junho de 1970, o Brasil entrou em campo para enfrentar a Tchecoslováquia no que seria o início de uma das caminhadas mais famosas da história do esporte. Aquele jogo no Jalisco, em Guadalajara, seria a primeira exibição de gala de uma série que marcaria a seleção mais icônica da história do futebol.
Aquele jogo estava cercado de dúvidas por parte da imprensa e de parte da torcida. Justificável. O Brasil fez um ano de 1969 praticamente perfeito sob comando de João Saldanha. Mas logo no início do ano da Copa, 1970, a situação mudou drasticamente com a demissão do técnico.
O tumultuado início de 1970
Não dá pra explicar facilmente a demissão do “João Sem Medo”, mas se pensarmos que ele era comunista assumido, que a CBD era completamente alinhada ao regime ditatorial militar, não é de se estranhar. Junte-se a isso o fato dele ser difícil demais de se conviver – tinha problemas com os integrantes da comissão técnica e até com jogadores. Acrescente ainda a recusa veemente do João de chamar jogadores sobre pressão das autoridades. Enfim. Tudo que o regime da época não queria. Aí veio o Zagallo.
A CBD não fechou com Dino Sani, primeira opção, optando pelo Zagallo – que ainda não era o “Velho Lobo”. Bom, com uma troca três meses antes da Copa qualquer trabalho é posto em cheque. Mas além disso, Zagallo promoveu uma série de mudanças e ainda foi obrigado a mudar outras. Não é atoa, que o Brasil passou a ser uma incógnita e muitos os viam como um time ameaçado pelo momento turbulento.
As mudanças de Zagallo
Zagallo tirou Djalma Dias, Dirceu Lopes e Zé Carlos do time. Trouxe Dadá Maravilha (constantemente apontado como o favorito do General Médici para o ataque) para o lugar de Toninho Guerreiro – num corte que até hoje é cheio de polêmica. Aliás, polêmica que também se fez presente no corte do zagueiro Scalla, do Inter – que até jogou em Abril, antes da Copa.
O técnico não levou três goleiros para o México, ao contrário das outras 15 seleções que o fizeram. Foi aí que o Rogério do Botafogo, ponta que jogaria com Zagallo, se machucou e teve que ser cortado. Ele ficou no México para ser uma espécie de olheiro do time. Para ser um pouco mais conservador, o técnico buscou Leão, para ser o terceiro goleiro – que viajou para o México se achando titular. Pois é…
Agora sim, chegamos no jogo. Na verdade não. Tostão se recuperou a tempo, mas jogou de centroavante. Piazza, volante, foi para zaga. Gerson recuou para volância e Everaldo entrou no time no lugar de Marco Antônio. Isso no dia do jogo! Sendo sincero: tá mais do que certo aquele que duvidou que ia dar certo.
Curiosidades do pré-jogo no Jalisco
O Brasil entrou em campo pela primeira vez em televisores brasileiros. Isso mesmo. Aquele foi o primeiro jogo transmitido via satélite para Brasil. Foi uma transmissão em cores, mas pouquíssimas TVs no Brasil não eram com imagens em preto e branco. Aliás, em geral, já eram pouquíssimas televisões pelo tamanho do país. Não importa. Pelo rádio ou pela TV, o time entrou em campo.
Vendo esse jogo, anos mais tarde, os uniformes eram incrivelmente simples. O Brasil, curiosamente, tinha dois fornecedores de uniforme e usava cada um deles em cada tempo. Não eram lindos, mas eram charmosos.
Os tchecos também não estavam sem problemas. Kraslav foi afastado do elenco que foi ao México pelos próprios colegas de grupo, por ser profissional. Isso mesmo. O elenco se sentiu incomodado com um certo tipo de “estrelismo” do jogador.
Outra coisa que assusta era a quantidade de gente em campo. A reportagem podia entrar tranquilamente no gramado do Jalisco e faze um amontoado em torno dos jogadores. Coisa improvável atualmente.
O começo do jogo e primeiro grande momento de Pelé
Bola rolou e os Tchecos começam no ataque. Entretanto, a primeira grande chance foi brasileira. Aos 3 minutos, Rivellino entortou a marcação e chutou cruzado. Pelé, sem goleiro, chutou pra cima. Um erro dentro da pequena área, que não combinava com o Rei.
O começo foi muito movimentado. Aos 6, Petras levou na linha de fundo, driblou Clodoaldo e chuta por cima. Um minuto depois, Gerson tabelou com Pelé e, depois do corte da zaga, Jairzinho chutou por cima.
O Brasil era muito ofensivo. Clodoaldo, o mais recuado do meio campo, chegava ao ataque muito facilmente. Talvez por isso estivesse de costas, olhando pra frente, quando Brito cobrou um impedimento pra ele… Brincadeira, tá! Não dá pra saber o que deu no Brito. O que sabemos é que Ladislav Petráš (melhor tcheco em campo) roubou a bola driblou Brito e fuzila Félix. Comemorou fazendo o sinal da cruz. Algo normal, mas não numa época em que seu país era socialista e, em geral, religiões não eram características do regime. Mas não vem ao caso, pois futebol, política e religião não se misturam (ironia!)…
O revés inicial não mudou em nada o Brasil. Na verdade, apenas intensificou o ataque. Aos 12, Tostão interceptou um chute de Gerson e chutou na rede, pelo lado de fora. Aos 16, o bom goleiro Viktor espalma um chute de Rivellino.
Em compensação, na retaguarda o perigo era eminente – o que mostra alguma imperfeição do time. Os 20, Carlos Alberto dá a bola no pé de Vesely, que invade livre e chuta por cima a chance de abrir um 2×0. Azar o dos tchecos.
Quatro minutos depois, Pelé cavou uma falta depois de tabelar com Tostão. Rivellino dispara a sua patada atômica na direção de Jairzinho, infiltrado na barreira inimiga. Ele sai (temendo pela vida, óbvio) e ela morre com violência das redes de Viktor.
O Brasil não deu chance dos adversários respirarem. Dois minutos depois Jairzinho recebeu de Pelé, dividiu com Viktor e jogou por cima. Mais seis minutos e o goleiro tcheco teve que agarrar um chute de Tostão. Dependendo de onde ele fizesse essas defesas com esse nome, viraria até santo.
Pelos nomes envolvidos, dava para ver que Viktor estava em apuros. Ele só podia descansar quando seu time subia para o ataque, pois ai dava tempo de caminhar até a meia lua e tomar um ar. Já sacou onde eu quero chegar, né? Foi numa dessas que, aos 41 minutos do primeiro tempo, o Brasil retomou a bola e Pelé, depois de ver o pobre Viktor adiantado, meteu um chute do campo de defesa, encobrindo o arqueiro que voltou desesperado e viu a bola passar raspando.
Vendo a situação desandar, o ataque do leste europeu resolveu agir até produziu um lance perigoso antes do primeiro tempo acabar, mas nada que mudasse o placar. Grande jogo!
A primeira “aula” da Copa
Mais uma vez a Tchecoslováquia começou sufocando. Antes do primeiro minuto Vasely completa um cruzamento a Félix opera um milagre.
O jogo seguiu muito aberto. Aos 2 minutos, Gerson chuta de prima e a bola bate no pé da trave. No rebote, Tostão não consegue finalizar. Aos dez, Jairzinho erra um chute livre. E aos 14, uma obra prima. Um lançamento indecente de Gerson para Pelé, que sobe absurdamente alto para MATAR NO PEITO, deixar a bola cair e fuzilar impiedosamente o coitado do Viktor. Que golaço!
Aos 17, os tchecos perdem uma chance na marca do pênalti. Aliás, um lance oriundo de um escanteio curto mal marcado (é como eu disse, o time não era perfeito… mas azar o da perfeição!). No lance seguinte Gerson atacou novamente. Mais um lançamento milimetricamente impossível de ser interceptado parou em Jairzinho. No primeiro sopro preciso, o que viria a se tornar o “Furacão da Copa” chapelou o Viktor e mandou a bola para o gol vazio. Outra pintura. Era hipnotizante, ao ponto do diretor de imagem da TV mexicana cortar a transmissão para a câmera errada…
Aos 20 minutos o jogo estava resolvido. Em grande parte, graças ao genial Gerson. Mas a coisa não podia ser tão fácil e o craque sente uma lesão e precisa ser substituído. Ainda bem que no banco tem outro craque: Paulo Cézar Cajú. Aliás, antes do Cajú entrar, da pra ver o precário banco de reservas do Jalisco – de madeira e sem cobertura. Tipo os banquinhos que tinham na praça lá em Jabó (quem não conhece procure por Jaboticatubas na internet. Vai ver a cidade, mas não os bancos, que já foram modernizados).
Voltando ao jogo, o time da Tchecoslováquia começou a chutar de tudo que é lado, mas sem perigo algum. As substituições do técnico não surtiram efeito algum e o pobre do Viktor precisou continuar a se virar para evitar mais gols. Aos 31 ele conseguiu para a bomba do Rivellino mas aos 38 não pôde deter Jair. Na verdade ninguém pôde. O camisa 7 recebeu do Rei, passou por dois marcadores – sendo que o Hagara foi vencido duas vezes no lance – e chutou cruzado no canto. Outra pintura!
E foi isso. O jogo caminhou para fim com o Brasil tocando a bola enquanto o Jalisco aplaudia. Parece que as incertezas sobre a qualidade do time foram jogadas de lado logo na estreia. Não dava para cravar o título, mas já dava pra ver que o favorito realmente vinha forte. Foi um jogo limpo e uma estreia de altíssima qualidade. Na verdade, nem jogo foi. Foi um aula.
Ficha Técnica
LOCAL: Jalisco, Guadalajara.
DATA: 03 de junho de 1970.
PÚBLICO: 52.897 presentes.
ÁRBITRO: Ramón Barreto (Uruguai)
GOLS: Petráš; Rivellino, Pelé e Jairzinho (2).
CARTÕES AMARELOS: Tostão, Gerson e Horváth.
BRASIL – Félix; Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza (Fontana) e Everaldo; Clodoaldo, Gerson (Paulo Cézar Cajú) e Rivellino; Pelé, Tostão e Jairzinho . Técnico: Zagallo.
TCHECOSLOVÁQUIA – Viktor; Hagara, Dobias, Migas e Horváth; Kuna, Vasely (Bohumil Vasely) e Hrdlicka (Kvašňák); Jokl, Adamec e Petráš. Técnico: Josef Marko.
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