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NA ERA DO GARRAFÃO E O BASQUETE FORA DA MÍDIA MAINSTREAM

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Para quem gosta de história do basquete, o Na Era do Garrafão é um prato cheio. Quem já conhece o projeto sabe da profundidade e da qualidade com que os temas são abordados e como esse trabalho é feito fora da lógica de cobertura da mídia tradicional, sem o foco quase que único nos resultados e cobertura do instantâneo. E essa iniciativa é mais uma daquelas que encontraram seu espaço na mídia independente.

O Na Era do Garrafão é um projeto desenvolvido em parceria com a Central 3, rede de podcasts que já foi destacada em outra matéria aqui do blog, para  falar sobre a história do basquete, indo da NBA ao basquete FIBA, sem nunca se esquecer do contexto em que essas histórias foram escritas. Grandes jogadores, mudanças importantes, momentos chave para o esporte, jogos e séries lendárias, e uma discussão sobre vários tipos de assuntos que tiveram importância na formação do basquete como ele vem a ser conhecido hoje.

Esse trabalho é a prova de que iniciativas de apaixonados pelo esporte podem ter uma qualidade profissional e, principalmente, um público muito grande. Mas quais as dificuldades de mantê-lo? Para falar sobre o projeto e como ele sobrevive na difícil trilha da mídia independente, conversamos com Vitor Camargo, que ao lado do Renan Rochi, idealizaram e levam adiante o Na Era do Garrafão.

Renan Ronchi (esquerda) e Vítor Camargo (direita) na gravação do Na Era do Garrafão com Magic Paula.

1. Quem é o Vítor e o que é o Na Era do Garrafão? Quando ele veio e por que motivo?

O Vitor não é mais do que um apaixonado por esportes desde o berço e que, ao longo desse relacionamento, decidiu que queria ir além do superficial e conhecer os esportes que ama de forma mais profunda. Talvez, por isso não ser tão comum no Brasil, eu acabei me voltando para os esportes americanos. E o Na Era do Garrafão, no fundo, é o resultado dessa caminhada, uma vez que esse aprofundamento na NBA me levou a conhecer melhor sua história, seu passado e sua trajetória.

E, na verdade, o Na Era do Garrafão surgiu com um convite; o Renan era um conhecido da internet que partilhava dessa paixão pela história do esporte e perguntou se eu não queria começar com ele um podcast sobre a história do basquete. Foi ele quem foi até a Central 3 e nos conseguiu a abertura e, desde então, tem sido trabalho e diversão em igual medida.

2. O que é a mídia independente sobre sua ótica? Você acredita que ela é um caminho viável para divulgação do esporte, principalmente quando não se trata do futebol?

O copo meio cheio é que a mídia independente é um bom caminho para divulgar o esporte, sim; o copo meio vazio é que, de certa forma, ele é talvez o único caminho hoje aberto para sair do futebol. Nossa cultura esportiva ainda despreza muito esportes que não sejam o bom e velho futebol e, na mídia mainstream, o pouco espaço que esses esportes conseguem geralmente é muito raso, superficial e baseado na repetição do óbvio.

Felizmente isso tem começado a mudar, mas ainda a passos lentos. Para entusiastas como nós, que realmente buscam um conteúdo mais complexo e inteligente, a vasta maioria disso ainda se concentra na internet e em produtores independentes, que fazem isso por amor e muitas vezes sem receber um tostão furado.

3. Qual o maior desafio de ser independente e trabalhar com produção de conteúdo sobre basquete no Brasil atual?

O maior desafio é justamente a falta de apoio e visibilidade, justamente pela cultura do “País do Futebol”. Existe muita oferta amadora de conteúdo disponível e pouquíssima demanda profissional, de modo que as expectativas desse trabalho um dia vir a se transformar em uma carreira e fonte de renda, são minúsculas.

Isso é particularmente problemático, porque o tipo de trabalho que nós fazemos no Na Era do Garrafão exige muito esforço, tempo e dedicação; e embora façamos nosso melhor para conciliar isso com uma profissão regular, muitas vezes isso se prova impossível e acaba levando ao fim de muitos projetos de alta qualidade.

4. E sobre modelo de financiamento. Como se manter de forma viável? Quais soluções você encontra seja para podcasts ou produção de livros?

Muitos hoje recorrem ao financiamento coletivo, em sites como Patreon ou Apoia-se, mas a verdade é que é uma minoria extremamente restrita que consegue, hoje, transformar isso em um sustento. Um produto pontual (como por exemplo o meu livro, Era de Gigantes, publicado em 2019) consegue ser vendido e gerar algum lucro, mas ainda muito limitado. Espaço pago em grandes portais ou operadoras é limitadíssimo e tudo isso acaba virando um ciclo vicioso: projetos muito promissores e de qualidade, que poderiam ajudar a desenvolver o interesse nesses esportes, acabam não indo para frente pela falta de espaço; o interesse nunca se desenvolve para criar esse espaço e por ai vai.

5. Formato e rotina: como definir isso? Como é a de vocês?

Olha, a rotina é bem irregular, justamente pela dificuldade de conciliar os trabalhos profissionais e o horário da Central 3, que é bem concorrido. Precisamos gravar fora de horário comercial, mas como essa realidade também se aplica à vasta maioria dos produtores independentes de conteúdo, esses são os horários mais disputados no estúdio e acaba limitando muito nossas opções. Em geral, precisamos nos encaixar nos horários disponíveis e, geralmente, recorremos ao expediente de gravar dois episódios de cada vez, para que só precisemos gravar uma vez por mês para manter a periodicidade quinzenal.

Sobre o formato, a verdade é que ele evolui aos poucos com cada episódio. O Renan sempre diz que não consegue escutar nossos primeiros episódios porque eles são péssimos, sem formato nem química, o que nós desenvolvemos com o tempo.

6. A mídia alternativa é o futuro ou já é o presente? Vai continuar crescendo? Para qual direção?

Em termos de criação e divulgação de conteúdo, eu acho que já é muito o presente. Podcasts em especial tem crescido a uma velocidade assustadora, possuem organizações como a C3 ou a B9 por trás, e estão conseguindo cada vez mais proeminência em termos de patrocínio e audiência. A tendência é continuar crescendo.

A direção que falta crescer e, onde ainda talvez seja mais o futuro, é realmente a questão financeira. Alguns podcasts – como nossos parceiros e amigos do Xadrez Verbal, por exemplo – conseguem viver através de financiamento coletivo e outros maiores de patrocínios. Mas ainda são uma extrema minoria. Mesmo portais mais tradicionais, como UOL ou Globo, por exemplo, ainda tem bastante resistência ao formato. Com a contínua ascensão da busca por esse tipo de formato, imagino que seja questão de tempo até essa resistência ir se quebrando aos poucos. Mas ainda não é para hoje.

Curiosamente, a pandemia e a quarentena parecem ter tido um efeito negativo a esse respeito; talvez pelos podcasts ainda serem muito ouvidos durante viagens curtas do dia a dia (para o trabalho, por exemplo), a audiência tem caído nos últimos meses.

7. Imparcialidade e parcialidade: existe espaço para as duas? Como lidar com as narrativas?

Eu diria que parcialidade é inevitável, até certo ponto. Somos todos humanos e não máquinas; temos nossas preferências e opiniões pessoais e, por mais que tentemos ser imparciais, nunca vai ser completamente possível. Claro que é importante tentar controlar e minimizar para que o lado pessoal não eclipse o técnico, mas também acho que é igualmente importante adotar uma postura de transparência: deixar claro, desde o começo, quais são essas parcialidades que podemos ter, para que o próprio leitor possa tirar suas conclusões.

Sem querer entrar demais na questão, mas é algo que eu vejo muito hoje no jornalismo em geral, essa polêmica de que ele tem que ser “imparcial”. Eu acho um preciosismo exagerado. A parte do jornalismo que trata de notícias e fatos, sim, precisa ser puramente técnica, mas parte grande do que é “fazer jornalismo” também vem de fazer interpretações e extrapolações em cima dos fatos técnicos. Nisso é impossível separar um certo viés. Claro que isso ainda precisa, sempre, respeitar a verdade e normas éticas, mas um controle total e absoluto da parcialidade não é um caminho.

Um exemplo que eu sempre gosto de citar nesse sentido, como economista de formação, é a revista The Economist,  uma revista que abertamente se posiciona como tendo uma visão considerada de direita. E esse posicionamento é importante, não só porque oferece uma informação para o leitor saber interpretar por ele mesmo o que ele lê na revista, mas também porque quando a revista publica algo que se identifica com uma visão de esquerda o impacto é muito maior e mais forte, vindo de quem veio. Então para mim o mais importante é ética e transparência.

8. A imprensa tradicional sofre mais com a crise do seu modelo de negócio ou com a crise de legitimidade e os questionamentos da sua informação?

Um pouco dos dois, a meu ver, e ambos nascem do mesmo fator: a ascensão da internet.

A internet tornou muito mais fácil e rápido o acesso à informação, mas talvez mais importante, o acesso gratuito. Como a imprensa tradicional vive justamente de vender essa informação às pessoas, a internet ofereceu uma alternativa mais eficiente e barata para esse consumo e logo tomou para si esse mercado. Por que comprar um jornal, por exemplo, se eu posso ter acesso a todas aquelas notícias em tempo real e de graça no Twitter? Alguns jornais nos EUA, notavelmente o Washington Post e o New York Times, conseguiram se reinventar através de um amplo sistema de assinantes online, mas isso só é possível porque oferecem um conteúdo único e diferenciado em termos de escopo e qualidade que você ainda não é capaz de encontrar na internet ou qualquer outro lugar. Mas são extremas exceções. E, de certo modo, é o problema que nós enfrentamos até no Na Era do Garrafão, ou na comunidade de NBA no Brasil em geral: como fazer o consumidor pagar por um conteúdo em meio a uma oferta tão ampla como a disponível na internet?

O aspecto da legitimidade também vem muito da internet e dessa era da pós-verdade que nós vivemos. Dentro dessa oferta abundante de informações, você consegue achar qualquer “informação” que quiser, mesmo que falsa, mas com uma cobertura que a faça parecer real. Então, ao invés das pessoas irem atrás da informação para formar sua opinião, agora elas buscam a “informação” que serve para “validar” a opinião pré-formada da pessoa. E isso, por sua vez, gerou toda uma gigantesca indústria voltada justamente para vender essas narrativas “alternativas” às pessoas para que elas não precisem sair da sua bolha e confrontar a realidade.

9. O que é falar sobre história do basquete neste contexto? Como levar esse tipo de conhecimento às pessoas nesse tipo de mídia? O público quer um emissor, um intermediário ou um mediador (se é que o público sabe o que quer)?

Honestamente, a história do basquete é um campo bem mais (relativamente) fácil nesse sentido, porque é um tema completamente novo e desconhecido para 99,9% das pessoas. Nunca existiu no Brasil qualquer tipo de produção de conteúdo voltado para o assunto e as pessoas também não sabem e estão acostumadas a consumir. Isso é uma vantagem, pois podemos, na maioria das vezes, fazer isso do nosso próprio jeito.

Em economia existe um conceito famoso que é a Lei de Say, que diz que a oferta cria sua própria demanda. Não é bem verdade, mas no nosso caso é: como é a primeira vez que esse assunto é levado ao “consumidor”, nós que criamos o que ele vai consumir e inclusive encaramos isso como parte da nossa missão – moldar esse consumidor que chega agora no assunto, de forma séria, inteligente e competente; sem verdades fáceis, mas ensinando a pensar e interpretar a informação como nós achamos que é o certo a se fazer.

10. Qual o papel da mídia independente diante do atual cenário da grande mídia atual, principalmente no campo esportivo e, no caso de vocês no do basquete?

Essa é uma longa discussão, que eu já tive inclusive com pessoas de grandes portais: hoje, esses portais produzem muito pouco conteúdo inteligente sobre esportes não-futebol (em geral, se limitando a dar notícias ou no máximo um ou outro blog) pela falta de demanda por esse conteúdo… mas essa falta de demanda existe, em grande parte, porque essas pessoas não tem acesso ao conteúdo em si, o que cria um ciclo vicioso.

Usando o basquete como exemplo, hoje a VASTA maioria da produção de conteúdo sobre basquete está em sites, blogs e podcasts independentes e amadores na internet. Mas só as pessoas que estão indo ativamente atrás do conteúdo consegue chegar até nós. A grande maioria dos potenciais consumidores não faz isso e assim nunca chega a virar um mercado consumidor de fato. Uma vez cheguei a negociar com o UOL que eles publicariam um artigo por semana do site Bola Presa, um conteúdo mais aprofundado e completo, embora ainda direcionado para um publico mais leigo. E foi um gigantesco sucesso, sempre batendo bem alto na audiência e chegando até certa vez a ser a segunda notícia mais lida do dia em toda a parte de esportes. Isso só mostra como existe um público consumidor potencial grande, que simplesmente não está sendo explorado, que o conteúdo não chega a atingir por causa desse gap que ainda existe entre o produtor e o consumidor.

Ainda assim, é difícil dizer que não acontece um efeito positivo. Muitas pessoas da minha geração (e da atual), que se dedicam hoje ao esporte e a produzir conteúdo, pegaram essa paixão e embalo justamente de produtores nacionais que vieram antes e nos ofereceram uma profundidade que nunca teríamos se continuássemos presos aos canais tradicionais. E, se continuarmos inspirando cada vez mais pessoas e crescendo esse mercado, acredito que um dia ele vai conseguir entrar dentro do mainstream – eventualmente.

11. A relação entre redes e “mundo” (rua, campo, quadra, cotidiano) é pautada em troca. Em que medida a mídia independente propicia essa troca e o quão benéfica e construtiva ela é?

Acho que o que o mundo externo mais nos oferece, acima de tudo, é uma plateia para contar as histórias que nós amamos. E pode parecer pouco, mas não é: a diferença entre um público que escuta de má vontade, desinteressado, e um tão ativo, engajado, que gosta de estar participando disso, como o nosso, é gigantesca. As interações são parte fundamental desse trabalho, ainda mais um feito por prazer e não dinheiro como o nosso. Sem essa receptividade, esse carinho, esse interesse dos nossos ouvintes, duvido que o podcast continuaria com esse ritmo todo.

E as vezes aparece algo fora da curva que faz tudo valer ainda mais a pena. Nosso podcast sobre a entrada dos jogadores negros na NBA, por exemplo, foi usado como base para TCCs e doutorados e muitas pessoas levaram para contextos de discussão social que não tem nada a ver com o basquete em si. Outro ponto alto foi quando uma ouvinte nossa, a Ailma, que é professora de história, usou nossa série sobre os Mundiais como material em sala de aula para seus alunos, para ensinar sobre a Guerra Fria e suas repercussões pelo mundo. E essas coisas são impagáveis, fazem tudo valer a pena no fim do dia. A ideia de que tem gente que valoriza tanto o que nós fazemos a esse ponto só faz com que a gente queira fazer ainda mais.

12. Para encerrar: se o Na Era do Garrafão fosse lembrado por dois casos – uma bola dentro e uma boa fora – quais seriam?

Se o podcast acabasse hoje, de longe meu maior motivo de orgulho seria o episódio #12, a entrada dos jogadores negros da NBA. Ainda é nosso melhor podcast, o que tem mais audiência, mas principalmente o que gerou mais impactos fora da bolha do basquete. Mesmo que nenhum outro episódio seja produzido, acho que só por esse especificamente existir já podemos nos orgulhar de deixar um legado real, que transcende o esporte, e que como os movimentos sociais atuais mostram, continua extremamente atual.

Quanto a bolas fora, acho que ainda não temos nenhuma particularmente abissal. O Renan sempre reclama dos nossos primeiros podcasts, quando ainda não tínhamos nenhuma química ou prática, mas eu acho que é parte do aprendizado. Então vou escolher um momento dos bastidores, que pouca gente sabe: uma vez nós tínhamos agendada uma gravação com a Helen Luz, a ex-jogadora da seleção e da WNBA. Por falta de horário, tivemos que marcar a gravação de manhã e o Renan também tirou tempo do seu trabalho regular e conseguir gravar. E quando chegou o dia… eu simplesmente confundi os dias, não botei alarme e deixei uma campeã mundial e lenda do basquete esperando enquanto eu dormia até tarde. Acordei com dez ligações perdidas de um Renan desesperado perguntando onde eu estava. Acho que foi, até hoje, a maior barrigada do Na Era do Garrafão.

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